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segunda-feira, 24 de outubro de 2011

O Luto do Anjo.


    Coça a cabeça lateral com o dedo médio.
Não ficará sofrendo a viuvez por mais três anos.
Aqueles cabelos louros, pele café-com-leite, face
rosada e sorriso perfeito, sem contar o corpo escultural...
Seria uma ofensa à Natureza ficar sozinha.
    Tira o vestido preto na sala mesmo e vai até o quarto.
Abre o armário, pega o mais lindo vestido de festas.
Uma seda azul com brilho celeste.
Deixa separado enquanto toma um banho demorado. Sábado de primavera promete...
    Prepara-se com maquiagem e perfume típicos dos seus vinte e cinco anos.
Liga para Fábio, seu antigo namorado, e deixa um recado na secretária eletrônica:
-Fábio , eu sempre o amei e ainda o amo. Preciso de você.
    Aguarda dez minutos . Parecem dez anos, relembrando toda a sua vida.
Casara-se de barriga. Seu pai, um general aposentado, obrigou Venâncio, de dezoito anos ,a
lavar a sua honra, sem pensar na felicidade da filha.
Marta tinha então vinte e dois anos. Casou-se sem pompa e com poucos sorrisos.
No sexto mês de gestação perdeu o bebê. Nunca contou a ninguém que era portadora do vírus
da AIDS.
Venâncio viu-se desobrigado a continuar aquela farsa. Pediu o divórcio e mudou-se para São
Paulo. Lá seria mais fácil receptar as drogas . O Rio de Janeiro já estava na mira dos policiais e
também das milícias.Estava na flor da idade. Queria curtir a sua vida, ainda que desregrada.
    Passaram seis meses e Venâncio foi morto num suposto acerto de contas, covardemente
crivado de balas nas costas.
Marta não deu a mínima para a sua morte . Além de estuprador, ele sabia que era
portador do vírus e não quis nem saber.Não contou, nem usou camisinha.
    A depressão veio mesmo quando soube do casamento de Fábio e Ângela. Esta, de anjinho só
tinha o nome. Sua melhor amiga lhe passara a perna. A sorte é que não tiveram filhos.
Passados os dez minutos, Fábio liga de volta:
-Marta, também quero vê-la. Encontre-me no Terra-Sul bar. Lá é discreto e ninguém conhece a
Ângela.
-mas,...e ela?
-Foi para a casa da minha sogra. A mejera está nas últimas.
-Às onze ?
-Combinado.
    Os dois chegam praticamente juntos. Cumprimentam-se numa abraço demorado e estalam
dois beijos molhados nas faces sorridentes. O ambiente chique exibe luzes baixas, com poucas
pessoas e som ameno. Conversam muito, dão gargalhadas, revivem os velhos tempos...
Foram três anos sem se verem ou se falarem.
Parecia um casal perfeito numa noite perfeita.
    De súbito Marta fecha a cara. Parecia não acreditar.
A anjinha do mal acabara de entrar,bufando, soltando fogo pelas ventas.
Aos berros entrelaça suas mãos nos cabelos de Marta e num giro circense levanta-a da cadeira,
ignorando a tentativa de intervenção do marido. Vão atracadas até a sacada do grande recinto.
Estava uma noite linda, estrelada e com um vento suave. Mas os gritos e xingamentos
acabaram com toda a magia. De simples briguinha de mulheres, a coisa vai ficando mais séria.
    Os puxões de cabelo são substituídos por socos, chutes, tapas. Num dos golpes desferidos,
Ângela vai ao chão, com o nariz e a boca sangrando. Ainda semi-deitada, puxa uma pequena
pistola prateada de sua bolsa vermelha, aponta-a em direção à rival e ameaça:
-Sua vaca, biscate, quer roubar o meu marido, é?
Marta fica estática diante daquela ameaça assustadora, mas nem por isso deixa de falar as suas
verdades.
_Vaca é você, vadia, traíra, que se dizia minha melhor amiga e roubou o meu homem.
    Fábio assiste atônito ao triste espetáculo, posicionado entre as duas, braços entreabertos, com
um olho na pistola e o outro na sua amada. Temia pelo pior. Os garçons ficam escondidos e a
maioria dos clientes já havia saído, desesperada.
    O gerente já chamara a polícia e espiava ao fundo, vez por outra escondendo-se atrás de um
pilar.
Fábio intervém como pode:
-Calma gente. Ângela, abaixe essa arma. Você vai acabar fazendo besteira. Deixe isso para
lá, vamos conversar.
-Conversar o que seu paspalho, maldito, você é outro que não vale nada!
    Enquanto a discussão parece polarizar-se, Marta aproveita a distração da rival e num rápido
salto apoxima-se, tentando pegar a pistola. Ambas se atracam novamente. Dessa vez Fábio
tenta ao máximo neutralizar os golpes de sua inconseqüente esposa. Poucos segundos depois
ouvem-se dois tiros, gritos e finalmente o trio separa-se. Fábio leva a mão ao peito sangrante:
_Ângela, o que você fez?
    As duas mulheres ficam emudecidas, enquanto Fábio cai grosseiramente ao chão. As fragrâncias
femininas misturam-se ao odor quente do abundante sangue de Fábio. Tanto sangue perdido não
poderia deixar alguém vivo.O blazer cinza não escapa da mancha medonhamente vermelha e
tampouco a camiseta branca que usava por baixo.
    A voz de Marta finalmente sai:
-Sua assassina, olhe o que você fez, olhe sua piranha, desgaçada!
E dizendo isso deita-se ao lado de Fábio , aos prantos, tentando, em vão, acordá-lo .
Ângela não diz nada. Afasta-se passo a passo, para trás, peplexa, com os olhos ainda naquele
trágico espetáculo. Usava um vestido longo branco que contrastava com a sua linda pele
morena.As alças longas quase deixavam os seios a mostra.Os grandes olhos verdes pareciam
ainda maiores e mais brilhantes.
    Sem perceber e antes que Marta tentasse avisá-la do perigo, Ângela desequilibra-se na cerca de
um metro e meio e despenca do vigésimo andar.
Marta chega tarde , após outro grito,dessa vez agudo e rouco, e volta a se agachar perto do seu
amado.
Finalmente estavam juntos, mais perto que nunca. Viveria agora o seu verdadeiro luto.
    Hoje, dois meses após a morte de Fábio e Ângela, Marta presta assistência a adolescentes,
vítimas de estupro, numa ONG do Rio.
Não poderá te filhos, devido ao problema da primeira gavidez que exigiu a retirada do útero.
Teria dito isso ao Fábio naquela noite. Mas não houve tempo. E o céu estava tão lindo.Não
permitiria histórias tristes.

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