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sábado, 25 de fevereiro de 2012

A Leveza do Ser

    "A leveza do ser está na sua capacidade de sorrir". Eliza pensava nessa frase que vira numa propaganda e finalmente sorriu. Mariano não se conteve e foi conversar com a moça. Trocaram gentilezas, carícias na face , mãos e  números de telefone.
Passava das duas da manhã e a danceteria lotada dava sinais de cansaço. Afinal, era uma quinta-feira. Noutro dia teria trampo  logo cedo. Bem que poderiam ter-se conhecido no início da festa.
Ainda houve tempo para duas músicas românticas, com dancinha de corpos colados e beijinhos.
      A madrugada bem que se poderia estender e perpetuar a magia, mas a festa estava mesmo  no fim. Despediram-se com a promessa de se  reencontrar no sábado.Eliza não parava de pensar naquela frase,"A leveza do ser está na sua capacidade de sorrir".Pegou seu carro no estacionamento da avenida  Jorge Schimmelpfeng, um fiat uno branco arregaçado, ano 86, e dirigiu rumo à sua casa, na vila A ."Que noite", pensava ela, lembrando de tudo e de todos que a fizeram sorrir. "Por que não sorrir? A vida é uma só, devo alegrar-me, conhecer pessoas,...ficar feliz". Por alguns instantes ficou deleitando-se com a imagem de Mariano paquerando-a, falando bonito e tentando impressioná-la. Vinte e um anos, seis namorados e duas internações para desintoxicação. "Que currículo o meu"-pensava, ironicamente, lembrando-se das matérias que ainda tinha que estudar. Seus amigos já haviam terminado o curso de psicologia e ela ali, patinando, doendo-se, corroendo-se, sorrindo para não chorar, sorrindo para ser leve...Como era difícil.
      Passou o pontilhão que leva ao Paraguai, quando viu o Testa na esquina. Ele olhou fixamente, reconhecendo o carro e fez um gesto rápido, como pedindo carona. Eliza hesitou, mas dez metros a frente parou e deixou-o entrar:
-E aí, princesa, vai uma pedrinha aí?
Eliza tirou o dinheiro da bolsa com as mão trêmulas, pegou duas pedras de crack e logo gritou:
"Me dá aqui essa porra, desgraçado, toma essa merda de dinheiro e some, não quero te ver nunca mais!"
Arrancou cantando( ou tentando cantar ) os pneus quase carecas e um pouco mais a diante estacionou numa rua quieta e sinistra; acendeu o cachimbo e acabou com a fissura. Ficou alucinada, foi em direção a Itaipu ainda fumando a segunda pedra. Já via cobras e elefantes cor-de-rosa... falta de ar e palpitação fizeram-na tossir e quase vomitar. Gostava de ir até a entrada de Itaipu. Naquele horário quase sempre estava deserta.
      Enquanto o carro ziguezagueava, e a sua cabeça também, imagens da sua infância passavam pela sua mente em flashes que exibiam sorrisos com Cíntia, sua melhor amiga. A rua onde morou, as brincadeiras com bonecas, a "bola queimada" e o "bets", os primeiros namoradinhos. Tudo causava-lhe sorrisos intermitentes, então voltava a ver os elefantes e sentir gosto de bosta pelo quase vômito. "Ah, que fiz de novo? por que fumar de novo, de novo e de novo?" As perguntas que  não conseguia responder ecoavam como um sino que badalava seu cérebro. "E o Beto, por que o Beto me deixou? Por que me deixou, e ainda grávida? Aquele filho da puta não poderia ter sumido assim"
Lembrou-se de quando fizera o aborto e quase morrera de infecção. Tinha só quinze anos. Beto na ocasião fugira para o nordeste e nunca mais deu notícias. Uma só transa, a primeira, e ela engravidara.
      Chegou à entrada de Itaipu.O policial ficou atento, olhando de longe aquele carro barulhento, sujo e se entortando para um lado e para outro. Antes que pudesse fazer o contorno e ir para sei-lá-onde, desmaiou sobre o volante acabando por bater no portão de ferro ao lado. O policial, percebendo que era uma moça e estava desmaiada, aproximou-se, tentou conversar , puxou seu ombro, tentou chacoalhar sua cabeça para tentar reanimá-la. A cena era triste, com odores de álcool, crack ,vômito e morte, havia um cheiro de morte iminente naquele carro. Incrivelmente o policial percebeu que Eliza sorria, não aparentava sinal algum de sofrimento, nem fraturas, nem sangue, nada. Como última tentativa colocou os dedos na parte lateral do pescoço e constatou  que  havia pulsação. Ela ainda estava viva. Imediatamente chamou uma ambulância que rapidamente chegou ao local.Os profissionais colocaram um tubo em sua garganta para ajudar na respiração. O soro e os medicamentos corriam soltos. Em direção ao hospital, o enfermeiro percebeu que Eliza estava com o punho direito cerrado.Abriu seus dedos com cuidado e pegou dali um bilhete amassado. Desamassou-o com lágrimas nos olhos de quem vê uma linda menina sofrendo para sorrir. Tinha a idade da sua filha mais velha. Ao abrir o bilhete percebeu uma letra feia, tremida, como escrita às pressas.Largou um sorriso e enxugou as lágrimas, lendo em voz alta : "Quem me vir nesse estado me ajude.Quero sorrir de novo. Hoje joguei minha última pedra na cruz".
      A ambulância acelerou e ligou a sirene...

Um comentário:

  1. Mini-crítica:

    Show-eu na minha a(h)orta! Parabéns pelo conto. Mostra a conta da transgressão, que cruz!; leva-nos à compaixão, é quaresma; o 'A Leveza' pesa numa dose forte de emoção. E' uma pedra, e de valor! Valeu Omar Ellakkis.

    [Tony Villas]

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